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Ódio revisitado
por Dorrit Harazim
na Revista Piauí
na Revista Piauí
Nada mais fugidio e elusivo do que o “momento decisivo” perseguido e
fotografado por Henri Cartier-Bresson ao longo da vida – aquele que define a
essência de uma situação. Não raro, esse instante se apresenta sem avisar. Com
frequência, sequer é percebido por quem o captou.
Cinquenta e quatro anos atrás, um jovem fotógrafo do Arkansas Democrat
conseguiu encapsular um desses momentos com sua primeira Nikon S2, máquina
da era pré-digital. Carregou a máquina com um filme Kodak Plus X, ótimo para
manhãs ensolaradas de final de verão, e foi cobrir o primeiro dia de aula de um
grupo de estudantes negros na maior e melhor escola média de Little Rock. Esse
pedaço de história ficou gravado no negativo de número 15.
Eram apenas nove os jovens negros selecionados pela
direção do principal colégio da cidade, o Central High School, para cumprir a
ordem judicial de integração racial no país. Segundo David Margolick, autor do
recém-publicado Elizabeth and Hazel: Two Women of Little Rock (ainda
inédito no Brasil), a peneira foi cautelosa. A busca se concentrou em colegiais
que moravam perto da escola, tinham rendimento acadêmico ótimo, eram fortes o
bastante para sobreviver à provação, dóceis o bastante para não chamar a atenção
e estoicos o suficiente para não revidar a agressões. Como conjunto, também
deveria ser esquálido, para minimizar a objeção dos 2 mil estudantes brancos que
os afrontariam.
Assim nasceu o grupo que entraria na história dos
direitos civis americanos como “Os Nove de Little Rock”. Eram todos adolescentes
bem-comportados, com sólidos laços familiares, filhos de funcionários públicos e
integrantes da ainda incipiente classe média negra sulista. Entre eles, a
reservada Elizabeth Eckford, de 15 anos.
Os pais dos nove pioneiros foram instruídos a não acompanharem os filhos
naquele 4 de setembro de 1957, pois as autoridades temiam que a presença de
negros adultos inflamasse ainda mais os ânimos. Por isso, os escolhidos
agruparam-se na casa de uma ativista dos direitos civis e de lá seguiram juntos
para o grande teste de suas vidas. Menos Elizabeth, que não recebera o aviso
para se encontrar com os demais e partiu sozinha rumo a seu destino.
e
longe ela avistou a massa de alunos brancos passando desimpedidos pelo cordão de
isolamento montado pela Guarda Nacional do Arkansas. Ao tentar fazer o mesmo,
foi barrada por três soldados que ergueram seus rifles. Elizabeth recuou,
procurou passar pela barreira de soldados em outro lugar da caminhada e a cena
se repetiu. Alguém, de longe, gritou “Não a deixem entrar” e uma pequena
multidão começou a se formar às suas costas. Foi quando Elizabeth se lembra de
ter começado a tremer. Com a majestosa fachada da escola à sua frente, ela ainda
fez uma terceira tentativa de atravessar o bloqueio em outro ponto do cordão de
isolamento.
Como pano de fundo, começou a ouvir invectivas de “Vamos linchá-la!”, “Dá o
fora, macaca”, “Volta pro teu lugar”, frases proferidas por vozes adultas e
jovens. Atordoada, dirigiu-se a uma senhorinha branca – a mãe lhe ensinara que
em caso de apuro era melhor procurar ajuda entre idosos. A senhorinha, porém,
lhe cuspiu no rosto.
Como não conseguisse chegar à escola, a adolescente então tomou duas
decisões: não correr (temeu cair se o fizesse) e andar um quarteirão até o ponto
de ônibus mais próximo. Um aglomerado de cidadãos brancos passou a seguir cada
passo seu. Imediatamente às suas costas vinha um trio de adolescentes, alunas do
colégio. Entre elas, Hazel Bryan.
“Vai pra casa, negona! Volta para a Á”– clic– “frica!” Segundo o
autor do livro centrado no episódio, foi este o instante em que a câmera de Will
Counts captou a imagem que se tornaria histórica.
Hazel, de quinze anos e meio, não carregava qualquer livro escolar. Apenas
uma bolsa e um inexplicável jornal. Ela não planejara nada para aquela manhã.
Vestira-se com o esmero que era sua marca – roupas e maquiagem ousadas para uma
adolescente daquela época – e arvorou-se de audácia ao ver tantos fotógrafos e
soldados da Guarda Nacional. Nada além disso. O resto pode ser debitado à
formação que recebera em casa – família de origem rural, ideário fundamentalista
cristão, atitude racial aprendida com o pai.
foto que correu mundo e fez a alegria da União Soviética naquele auge da Guerra
Fria é tudo, menos estática. Ela fala, grita, tem vida e movimento. Mostra
Elizabeth num vestido de algodão feito em casa, estalando de branco, com um
fichário e um livro apertados contra o peito e medo escondido por óculos
escuros. Em meio à massa de brancos que a seguem, Hazel. Olhos e sobrancelhas
franzidos, a boca aberta contorcida pelo ódio e pela raiva.
Foi assim que Elizabeth e Hazel se “encontraram” sem se conhecerem. E é o que
as manteve ligadas, ora contra, ora por vontade própria, por mais de cinquenta
anos.
Assim como Hazel se converteu na imagem oficial da intolerância, a caminhada
solitária de Elizabeth virou bandeira para toda uma geração de atletas,
advogados, professores negros decididos a não recuar. Décadas depois do
episódio, Bill Clinton, que governou o mesmo Arkansas nos anos 80, admitiu o
quanto a foto fez com que ele acertasse seu compasso moral.
Em seu livro sobre essas duas vidas, o jornalista David Margolick responde a
todas as perguntas que a foto deixa suspensas, e vai além. Editor da revista
Vanity Fair, ele já havia escrito Strange Fruit – The Biography of a
Song, a canção que Billie Holiday imortalizou em 1939 e que já expunha o
racismo e denunciava os linchamentos de negros.
O episódio daquela manhã de 1957 levou Little Rock à combustão e convenceu o
presidente Dwight Eisenhower a enviar tropas da 101ª Divisão Aerotransportada
para assegurar a integração escolar decidida três anos antes pela Suprema Corte.
Ironicamente, Hazel e Elizabeth jamais chegaram a se cruzar nos corredores da
Central High School, pois os pais da menina branca, assustados com a repercussão
da foto, preferiram trocá-la de escola. Mas “Os Nove de Little Rock”, uma vez
admitidos, viveram anos de pavor. Semana após semana, foram alvo de agressões –
desde cusparadas a cacos de vidro no chão do chuveiro na hora do banho.
Elizabeth, primeira a ser empurrada escadaria abaixo, só teve o rosto preservado
por ter usado como escudo o mesmo arquivo que segura na foto.
ali
em diante, em plena era Kennedy dos anos 60, Hazel, a garota branca, seguiu seu
destino. Abandonou o colégio, casou-se aos 17 anos, teve três filhos, morou em
trailers, partiu de Little Rock e fez paradas temporárias em atividades tão
distintas como apresentações de dança do ventre e trabalho voluntário junto a
crianças carentes negras. De volta a Little Rock, despencou para perto da linha
da pobreza e era vista como um fantasma a rondar o passado de violência da
cidade. Decidiu então ir ao encontro de seu indesejado papel na história
americana e embarcou em ações sociais e ativismo comunitário.
Elizabeth, enquanto isso, passou cinco anos servindo no Exército, mas
conseguiu formar-se em história pela Universidade do Estado de Ohio. Mãe
solteira de dois filhos e recorrendo ao auxílio-desemprego nos anos 80, beirou a
depressão. Um de seus filhos, também depressivo, acabou sendo morto por um
policial ao sair dando tiros pela rua.
Somenteem 1997 as duas mulheres, então com 55 anos de idade, se encontraram
de verdade. A ocasião foi um evento, com novo espocar de flashes e publicidade:
o 40º aniversário da fatídica manhã de 4 de setembro de 1957. Várias décadas
antes, Hazel conseguira localizar Elizabeth pela lista telefônica, tomou coragem
e discou o número para pedir desculpas. Elas foram aceitas sem, contudo,
entreabrir qualquer contato pessoal.
Foi por ocasião do evento comemorativo de 1997 que as duas mulheres
estabeleceram um tênue laço. Participaram de um seminário sobre questões
raciais, deram palestras, foram entrevistadas por Oprah Winfrey. Chegaram a
cogitar escrever um livro a quatro mãos. E posaram também, desta vez lado a
lado, para nova foto feita pelo mesmo Will Counts. Nela, as duas aparecem
sorrindo em frente ao portal da Central High School, e a imagem acabou sendo
transformada num pôster intitulado “Reconciliação”. E quando a sessão de fotos
se encerrou, com ambas já fora de enquadramento, as duas mulheres iniciaram uma
tentativa de amizade.
À medida que Elizabeth foi ganhando em autoestima, porém, ela voltou a tomar
distância de Hazel. A bordo do cargo de oficial de justiça e agraciada com uma
Medalha de Ouro do Congresso, ela foi se tornando mais exigente, mais crítica,
menos disposta a oferecer perdão em nome de um final feliz. Desconfianças
antigas reemergiram e quando o episódio completou meio século, em 2007, a
relação tinha azedado de vez. Naquele ano, Elizabeth acusou Hazel de se esconder
atrás de uma confortável amnésia sobre o incidente – ela havia descoberto que a
adolescente branca mantivera contato o tempo todo com os alunos da escola que
infernizaram a vida dos nove negros, e que Hazel fazia parte de um grupo
organizado que os atacava fisicamente.
Hazel, por seu lado, mantém até hoje que naquela manhã de 54 anos atrás ela
não pestanejou nem se sentiu mal. Para o autor de Two Women [Duas
Mulheres], em momento algum ela achou ter feito algo errado. Ou inusitado. Ou
que marcaria a sua vida para sempre. Ela estava apenas traduzindo o que ouvira
em casa durante quinze anos.
Ambas chegam à terceira idade cansadas de dar palestras e entrevistas que
apenas reavivaram ressentimentos e frustração – Hazel diz que não aguenta mais
pedir desculpas; Elizabeth sustenta que sua nêmesis, no fundo, sequer sabe do
que está se desculpando. “Elizabeth só então se deu conta do quanto de amargura
carregava no peito, e o quanto de raiva e ódio a haviam paralisado”, escreveu
Margolick. E conclui: “Ela sempre teve melhor formação e foi mais
intelectualizada do que Hazel, mas Hazel acabou mais bem ajustada no seu entorno
social.”
Segundo o autor, novas barreiras substituíram as antigas e o embrião de
amizade acabou sendo solapado pelas mesmas fissuras e incompreensões que
continuam a permear as relações raciais nos Estados Unidos. Margolick vai além
do simples acompanhamento das duas mulheres idade adentro. Ele amplia a
narrativa, torna-a mais complexa. As vidas entrelaçadas de Elizabeth e Hazel
servem de metáfora para o país, sem soluções fáceis para um impasse moral dessa
grandeza.
Elizabeth nãose dispôs a entrar na Central High School em 1957 para
fazer amizades. Ela sentou nos bancos da escola segregada para quebrar as
barreiras legais e institucionais que negavam aos negros americanos
oportunidades iguais. Hoje, as barreiras legais não mais existem. Mas a cor da
pele ainda marca bairros, igrejas, prisões e também escolas nos Estados Unidos.
Em 2007, meio século depois que Elizabeth e Hazel protagonizaram o “momento
decisivo” captado em foto, 40% das crianças negras americanas ainda frequentavam
escolas quase totalmente segregadas.
Sempre é bom relembrarmos incidentes e até atrocidades cometidas em nome de uma sociedade arcaíca e doentia (preconceito), para que não venhamos a cometer mais nenhum ato vergonhoso como este.
Muita Luz Mariah
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